27.4.07

livro de horas


aqui diante de mim, eu, pecador, me confesso de ser assim como sou. me confesso o bom e o mau que vão ao leme da nau nesta deriva em que vou. me confesso possesso das virtudes teologais, que são três, e dos pecados mortais, que são sete, quando a terra não repete que são mais. me confesso o dono das minhas horas, o dos facadas cegas e raivosas, e o das ternuras lúcidas e mansas. e de ser de qualquer modo andanças do mesmo todo. me confesso de ser charco e luar de charco, à mistura. de ser a corda do arco que atira setas acima e abaixo da minha altura. me confesso de ser tudo que possa nascer em mim. de ter raízes no chão desta minha condição. me confesso de abel e de caim. me confesso de ser homem. de ser um anjo caído do tal céu que deus governa; de ser um monstro saído do buraco mais fundo da caverna. me confesso de ser eu. eu, tal e qual como vim para dizer que sou eu aqui, diante de mim!
Miguel Torga



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