14.12.08
Lembro me dum filme. 27ª edição do Fantasporto, vale a pena referir.
Era estranho e inquietantemente ordenado.
Um homem é levado para uma vida perfeita. Uma mulher cumpridora, submissa como se quer. Um emprego organizado, remuneração suficiente, sem excessos que perturbem o funcionamento linear.
Um dia esse indivíduo sem nome (far lhe ia jus um número, perdão, um mapa de bits), espera pelo metro.
Sabe se com precisão o tempo que o transporte demora a chegar.
Um casal beija se nos bancos brancos.
O som do beijo é mecãnico. Terrivelmente compassado.
O espectador já é o homem. O controlo dá vontade de morrer.
E ele suicida se. Um salto técnico. Pouco comovente, com geometria: momento exacto da chegada do metro.
E o filme torna se deliciosamente estupido e hilariante.
O homem não morre. Nao consegue. É probido morrer.
Ele deseja, persegue e implora a morte.
E o espectador, a dada altura, torce pela morte dele, como uma claque num jogo. Sugere tipos de mortes. Desanima quando o homem sem nome se levanta.
Naquele momento antes do fim, é encaminhado para a sua vida tecnicista. Para o seu pensamento esquadrizado.
No fim descobre musica. A musica era proibida. Veículos de emoção eram proibidos.
Mas ele descobre, a música e um cheiro a infância. Um qualquer, nao importa, todos temos um.
O homem sem nome teve de calcular a fuga.
Era uma vez um homem sem nome.
(comentário)
por Rui David Dias
Tenho pensado muito nesta questão. Porque andam os loucos hoje tão bem informados? Por serem loucos? Ou foi a informação que os enlouqueceu? Uma coisa é certa: a demência não impede um discurso articulado e crítico sobre o mundo. Impedi-lo-á a sanidade?
Quando não estamos informados, é sinal obvio que determinada informação sobre um assunto não nos chegou, e nesse momento permanecemos cheios. Digo cheios pois á medida que recebo mais e mais infomação sinto-me a tornar vazio, como que cada informação não me fosse adicionar nada mas sim retirar. Retira me a leveza que tenho quando permaneço conscientemente inconsciente. Gosto da sensação de estar inconsciente de viver na emoção, e cada vez mais procuro não me informar, não nas coisas mais profundas do ser em cada um de nós, mas nas coisas mais superficiais que com todos os dias somos atordoados. Coisas inuteis que guardamos todos os dias no pensamento e que todos os dias voltamos a guardar. Dou graças por adormecer todos os dias e nesse processo matar a informação, em cada dia cultivo a ideia que nasci de novo, tenho sempre consciencia do dia anterior, mas tento com que esse dia anterior, que já não existe, me manipule o dia em que estou a existir. O louco tem razão “Acabaremos também por ir lá parar!”,mas, enganou-se na frase "já estamos lá", não é iraque, mas estamos todos os dias em sacos de plástico mesmo sem estar-mos mortos, mas vivemos mortos quando num acto de protesto, ninguem protesta contra ele, por mais que fosse "esteja calado, quero dormir a caminho do trabalho."
Vivemos em sacos de plástico e ainda sobre a lei da fotográfia, e vamos continuar a viver porque esquecemos nos todos os dias que para além da visão e da racionalização existem milhões de formas de absorver o mundo, digo absover e não entender, entender significa racionalizar logo controlar e para mim obsessão de controle é puramente medo.
13.12.08
Sócrates: Vê agora o que aconteceria se eles fossem libertados das suas correntes e curados da sua desrazão. Tudo não aconteceria naturalmente como vou dizer? Se um desses homens fosse solto, forçado subitamente a levantar-se, a virar a cabeça, a andar, a olhar para o lado da luz, todos esses movimentos o fariam sofrer; ele ficaria ofuscado e não poderia distinguir os objectos, dos quais via apenas as sombras anteriormente. Na sua opinião, o que é que ele poderia responder se lhe dissessem que, antes, ele só via coisas sem consistência, que agora ele está mais perto da realidade, voltado para objectos mais reais, e que está a ver melhor? O que responderia se lhe designassem cada um dos objectos que desfilam, obrigando-o com perguntas, a dizer o que são? Não acha que ele ficaria embaraçado e que as sombras que ele via antes lhe pareceriam mais verdadeiras do que os objectos que lhe mostram agora?
Glauco: Certamente, elas lhe pareceriam mais verdadeiras.
Sócrates: E se o forçassem a olhar para a própria luz, não achas que os olhos lhe doeriam, que ele viraria as costas e voltaria para as coisas que pode olhar e que as consideraria verdadeiramente mais nítidas do que as coisas que lhe mostram?
Glauco: Sem dúvida alguma.
por Paulo Moura
"O homem entrou no metro mas não começou logo. Esperou que pensassem que era um utente normal. Então lançou, aos gritos: “Mais 20 mil soldados para o Iraque? Vão regressar todos em sacos de plástico. Todos!” Estava a falar com alguém? Não. Gritava para quem quisesse ouvir. “Acabaremos também por ir lá parar!” E continuou, sem baixar o volume, num discurso ininterrupto, como se se dirigisse a uma plateia interessada. E talvez fosse o caso.
O homem tinha a barba por fazer e vestia roupas sujas e rotas. Levou escassos segundos a que os passageiros o classificassem mentalmente como um “louco do metro”. Como tantos outros do género, no metro de Lisboa. Entram numa estação, fazem um discurso e saem na seguinte. Ninguém reage, obviamente. Ninguém o interrompe para dizer “desculpe, não concordo inteiramente com esse ponto…”. Também ninguém diz: “Cale-se, que me está a incomodar”. As pessoas evitam até cruzar o olhar com o dele. Se identificasse um interlocutor, o homem poderia desatar a falar para ele, a fazer-lhe perguntas, ou a insultá-lo, o que seria muito embaraçoso. Ou poderia mesmo desferir-lhe um murro certeiro no nariz, caso lhe ocorresse interpretar o silêncio aflito do transeúnte como prova irrefutável da sua conivência com a política de Bush para o Iraque.
Era um louco do metro e portanto o melhor era não ligar. Falou mais um pouco sobre o Iraque e depois passou para a reforma da administração pública em Portugal, não sem antes se deter brevemente no problema do nuclear do Irão. Podia ser maluco, mas não havia dúvidas de que estava muito bem informado. Mais do que as pessoas normais.
Lembrei-me de entrevistas que ouvi do Gato Fedorento ou dos redactores do Contra-Informação, em que descrevem o seu método de trabalho: sentam-se todas as manhãs a uma mesa, com a imprensa do dia, e estudam as notícias e os temas sobre os quais vão depois construir o discurso humorístico. Será que o maluco do metro faz o mesmo? Começa a manhã com uma pesquisa exaustiva em jornais e revistas, na internet, em livros especializados, sublinhando, tirando notas, para depois elaborar o seu discurso louco do dia?
Tenho pensado muito nesta questão. Porque andam os loucos hoje tão bem informados? Por serem loucos? Ou foi a informação que os enlouqueceu? Uma coisa é certa: a demência não impede um discurso articulado e crítico sobre o mundo. Impedi-lo-á a sanidade?
Será a imposição de limites ao horizonte uma condição para a nossa saúde mental?
Ninguém sobreviveria se soubesse de tudo o que se passa no mundo. Hoje, as informações estão disponíveis em doses capazes de nos destruir. Não é possível compreender a sociedade global sem o recurso a teorias da conspiração, projectos terroristas, filosofias paranóicas. O nosso modelo axiológico apenas está preparado para o universo do indivíduo e do seu reduzido ângulo de visão. Não mais. Em todas as épocas há lendas sobre homens que subiram ao topo de uma montanha e enlouqueceram.
Talvez a ignorância seja, portanto, um recurso dos mais aptos. Fechamo-nos, por instinto de sobrevivência. A liberdade tornou-se um handicap evolutivo. Privilégio dos loucos, que só têm a perder uma audiência muda de curiosidade. “Cambada de estúpidos”, rosnou entre dentes o louco do metro antes de se apear na estação seguinte."
12.12.08
loucos versus humanos
Consistência mentirosa duma existência absoluta mas finita.
A matéria é tão sorrateira como o cancro.
Merecia morrer. Disse que devia morrer. Mas o medo.
Belo é o visceral. Quem abraça a verbalização orgâncica de algo tão visceral, tão único. É livre. Mas maldito.
Nao é preciso morrer. Só dormir melhor. E banhar de novo, lavar uma e outra vez as entranhas da solidão.
Espero à janela. A janela sobre algo que há de ser bonito um dia. Se quiser. Depende da luz.
Sim, como o impressionismo! Vou fotografar na alvorada, na canícula, ou nas chuvas. Um dia, se e souber esperar, há de ser lindo. Permaneço.
8.12.08
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Orar. Um recurso individual para riscar as nossas máculas.
Mas orar nao basta, sou leiga em matéria de confissão.
Cidade de religião. Sofrer como um cristão.
Expulsa diariamente do paraíso.
Reservada a dedicar me torridamente a um cigarro duma porta de entrada, com um "proibido falhar" dactilografado.
Já pregava torga o culto da ovelha tresmalhada.
Mas pequei de novo, menti: deus nao me desiludiu.
6.12.08
Fico só aninhada, tonta, na espera vã. Mas já é de dia. Desaprendi a troçar de mim.
São várias as buscas por uma salvação um pouca mais justa, para uma desculpa mais honesta.
Os punhos estão cerrados, mesmo quando não noto. E dou conta só por breves instantes, para saber de que sou feita.
E de repente soa como uma ovação. Uma peça de teatro. As palmas abafadas mas impostas. Uma narrativa agradável e apartes que embriagam o discernimento.
Mas as didascálias confessam me que deus me abandonou.
Encanta me esta atribuição. O papel dramático. Os gritos chorados e sofridos.
Cansei do deslumbramento por causas. Cansei do existencialismo gratuito.
Nao quero sentir mais isto. Chega. Acabou. Assassinei os meus pierrots.
Vou dançar em cima de mim do começo, para me sentir mais e maior.
Vou abraçar me a cores. Sempre consciente que sou fascinante a preto e branco.
Ainda não penduramos o nosso lençol
De facto perdoei me no banho, enquanto apertava o corpo com as unhas de verniz lascado. Mesmo assim ainda femininas.
Tentei passar por mim outra vez, e fiz e refiz a tua trança vezes sem conta, para que te pudesses aceitar e amar um bocadinho mais na loucura dos dias.
Desfiz a trança na madrugada, talvez num acto de aceitação. Avançaste, não bem, mas firme, como avanças sempre.
Também gostava de ser melhor, de morrer duma boa maneira, atrevo me a dizer grandiosa.
Nao chores. Podes sempre chamar por mim e eu faço te sentir bonita.
Mas vou na mesma continuar a ser menos do que sonhei para mim.
"escrevi este livro na felicidade louca de escrevê lo"